sexta-feira, março 20, 2009
O Homem que não usava a cabeça para pensar...
Era uma vez um Homem que não usava a cabeça para pensar... Sabia que a tinha, logo ali acima dos ombros mas não sabia para que é que ela servia. Achava a cabeça, um pedaço de si perfeitamente irritante e pesado. Por isso só a usava quando precisava de contrariar alguém porque sabia que abanando-a com força demonstrava o seu repúdio com um valente Não. Ou então abanava-a mais devagarinho de baixo para cima e dizia que sim as coisas que lhe apetecia ter.
Este Homem, era um Homem como todos os Homens e tinha um corpo igual a todos os corpos ...no entanto achava que era mais perfeito que todos os outros. Costumava mesmo dizer que o mundo a sua volta era desinteressante e que geralmente só olhava para ele porque podia encontrar algo que lhe pudesse servir. De resto o mundo era perfeitamente dispensável e vazio...só servia mesmo para fazer de cenário as suas fantasias.
O Homem que não usava a cabeça para pensar olhava sempre com algum desdém para as pessoas que andavam sempre com os braços abertos preparadas para abraçar. Aquilo metia-lhe uma certa confusão...dar abraços por dar...sem estar à espera de receber algo em troca? É absurdo de mais..os braços são bons é para apertar nas paixões e para agarrar com força um bom prato. O que ele gostava de um bom prato cheio de comida ..mas não uma comida qualquer. Refeições normais, daquelas refeições que alimentam e são saudáveis eram um desperdício...ele gostava era de bolos.
Sim..de bolos e quanto mais doces melhores. Se ele pudesse usava as mãos para pegar em todos os bolos do mundo e metê-los dentro da... barriga. Isso sim, era usar as mãos com inteligência.
Agora usas as mãos para firmar um perdão..para agarrar alguém que estivesse a cair sem salvação..isso seria infantil. Cada um sabe de si e quem não quer males não se mete neles...esta lição aprendeu-a ele com o tempo e só ela lhe interessava quando tinha que colocar as mãos atrás das costas fingindo nem olhar para as desgraças dos outros.
Este Homem achava que não precisava de pensar, porque já tinha nascido um génio e nada mais tinha a absorver para dentro de si... por isso a cabeça era quase só um enfeite. Podia usar um relógio novo e caro ou então um lenço no pescoço de cores berrantes..mas não porque isso seria ser demasiado banal e ele detestava banalidades e ser igual aos outros..aqueles seres hipócritas que caminhavam por ironia à frente dele na rua. Então este Homem usava como enfeite nada mais nada menos do que a sua cabeça. É verdade que ele a estimava bem..penteava-lhe os cabelos, colocava água de colónia no rosto. Queria sempre que ela saísse bem arranjada à rua..já que tinha que a suportar no corpo ao menos que tivesse um bom aspecto. Até porque junto com a cabeça vinha um rosto que tinha uma boca cheia de dentes e sempre que ele abria aquela boca e os dentes vinham espreitar cá para fora as pessoas olhavam com mais facilidade para ele e isso de alguma forma devia ser considerado vantajoso.
Um dia o Homem que não usava a cabeça para pensar decidiu ir dar um passeio até a beira mar. Mas como detestava caminhar sozinho, lembrou-se de convidar a Mulher que não usava as pernas para andar para ir com ele. Na verdade ele queria mesmo era a companhia da Mulher que só usava a boca para beijar, mas ela essa tarde estava muito ocupada a beijar outro Homem qualquer.
Então o Homem que não usava a cabeça para pensar foi buscar a casa a Mulher que não usava as pernas para andar..
Como a Mulher não sabia que as pernas serviam para andar tinha o vicio de se deslocar sempre ao colo dos outros e era assim que ia para onde queria...Por isso o nosso Homem lá teve que pegar nela ao colo e lá foram os dois caminhando..perdão, os dois não...porque apenas ele caminhava arrastando o peso dela. Ele lá treinava o seu poder de conversação falando-lhe da beleza dos pássaros quando a brisa lhes tocava...do brilho que ela tinha no cabelo e da emotividade do seu olhar, sempre com os dentes de fora a endireitar sorrisos. Só que a Mulher que não sabia que as pernas serviam para andar, passava a conversa toda a tentar enrolar as pernas nele e a apertar-lhe o pescoço com medo de cair de alguma altura mais alta.
Que Mulher aborrecida e chata dizia-lhe o instinto, mas a verdade é que tinha umas pernas magnificas dizia-lhe o olhar e geralmente ele ganhava sempre o duelo. É um sacrifício que ainda vai valer a pena decidia o Homem que não usava a cabeça para pensar...não precisava de reflectir sobre a questão porque era mais do que óbvia a resposta. E lá iam eles pela areia com o Homem quase a perder o fôlego de carregar nos braços aquelas pernas pesadas mas compridas.
Finalmente o Homem que não usava a cabeça para pensar e a Mulher que não sabia que as pernas serviam para andar, chegaram a um lado qualquer e o Homem pensou que iria colher o fruto do seu árduo trabalho. Mas qual não foi o seu espanto, quando a Mulher que não sabia que pernas serviam para andar queixou-se do calor e disse que queria ir tomar um banho naquela água imensa que parecia tão fresquinha . O Homem fez-lhe a vontade e preparava-se para pousar a Mulher na areia quando ela de repente começou a resmungar e a dizer-lhe se ele estava louco por querer colocar as suas pernas na posição vertical..posição essa que as pernas dela não conheciam de tanto estarem habituadas a posição deitada. A Mulher não esteve com meias medidas e exigiu que o Homem a levasse ao colo até ao mar para proteger as pernas dela das ondas...ele teria que afastar todas as ondas para ela não ficar com as pernas molhadas mas só com elas refrescadas pela aragem. Que grande chatice para o Homem que não usava a cabeça para pensar, mas como não era Homem de fugir a desafios principalmente quando as recompensas eram altas e esguias, ele avançou com a Mulher ao colo cheio de instinto e de orgulho na sua força.
Inicialmente aquela caminhada pelas águas com a Mulher agarrada a si como uma lapa e aos gritinhos pareceu-lhe fácil de ultrapassar e deliciosamente uma peripécia aventureira.
O pior foi quando o mar se enfureceu com a presença daqueles dois intrusos estranhos agarrados um ao outro como se fossem polvos e decidiu enxutá-los dali com vagas alteradas.
O Homem que não usava a cabeça para pensar começou a sentir dificuldades em se manter erecto com tantas ondas a chicotearem-lhe o corpo e aquela Mulher alta e esguia de repente começou a pesar toneladas e já tinha mais aspecto de baleia do que de sardinha fina.
Mas não a ia largar...se havia coisa que o Homem que não usava a cabeça para pensar sabia ser...era ser teimoso e como rei da teimosia lá continuava com a Mulher colada a si a apertar-lhe cada vez com mais força e desejo as carnes do seu pescoço. Era verdade que ele até já estava a sentir alguma falta de ar, mas em pleno acto todos sentimos alguma asfixia temporária,logo aquela sensação de estar a sufocar era perfeitamente natural para ele e não lhe causava nenhum transtorno.
O mar sentindo a teimosia daquelas pobres criaturas, foi-se tornando mais arrogante e com vontade de lhes fazer frente e resmungou com muito mais força. Com tanta força mas com tanta força que o Homem e a Mulher já andavam aos rebolões no meio das ondas mas sem nunca se largarem, parecia mesmo que as mãos dela se tinham fundido ao pescoço e os braços dele já pareciam prolongamentos exaustivos do rabo dela de tanto a apertar por entre os dedos. Noutra situação aquela sensação “apalpativa” seria até bem vinda, mas numa situação de morte iminente era mais considerada pelo Homem uma sensação aborrecida...Que estranho ele sentir algo assim...
mas as pernas dela..as pernas dela eram hipnóticas e o Homem não conseguia deixar de olhar para elas. Bem, era verdade que estava prestes a afogar-se e a levar aquelas pernas tão fantásticas direitinhas para o cemitério dos Prazeres mas ao menos iria morrer sorrindo. Isso servia-lhe de consolo enquanto a sua vida se extinguia lentamente...
Se ao menos o Homem que não usava a cabeça para pensar tivesse pensado noutra coisa para além de uma belas pernas saberia que o ar faz falta para respirar...
Daniela Pereira in Contos sem pés nem cabeça..
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