quinta-feira, outubro 20, 2005

Os anjos não vestem batas brancas



São agora três e meia e Clara já não se passeia por entre as montras do Centro Comercial. Com o seu passo decidido, vai-se afastando da confusão e do belo vestido preto que ficou na loja de roupa.
Ainda não tinha dado mais de vinte passos para lá da saída do Centro Comercial, quando ouviu um grito lancinante que ameaçava perfurar-lhe os tímpanos de tão agudo que soara.
Num gesto involuntário leva as mãos aos ouvidos para se proteger daquele barulho agressor e para sua surpresa alguém quase que a derruba ao passar por ela numa corrida desenfreada.
Clara fica um pouco atordoada com o incidente, mas rapidamente recupera o equilíbrio e apressa-se a procurar o culpado da sua quase queda. Olha à sua volta, mas não vê ninguém... o passeio está simplesmente vazio, como se as pessoas se tivessem evaporado. Na cabeça de Clara, surge então a imagem daquele gelado que ela por distracção deixou derreter nas suas mãos quando ficou a olhar fascinada para um casal de namorados que trocavam juras de amor mesmo ao seu lado.
Era parecido com o que estava agora a acontecer bem à sua frente... num minuto a rua estava cheia de pessoas e o seu gelado de camadas de natas e chocolate, mas só porque ela se distraiu por breves momentos a rua estava agora vazia. Assim, como o seu gelado que com o calor daquela tarde derreteu até restar apenas o papel prateado que o envolvia. E tudo, só porque ela se apaixonou e não conseguiu desviar o olhar daquele cenário romântico na praia. Existia realmente ali um fio condutor entre aqueles dois instantes vividos e Clara sentia que o tinha encontrado.
Ainda estava absorvida nos seus pensamentos, quando escuta um barulho estranho. Foi quase como se estivesse a ouvir o senhor Mendes do talho a quebrar os ossos da perna de porco com o machado. Sim, pensava ela satisfeita, era mesmo esse o som que acabava de ouvir.
Procurou então perceber o que tinha afastado as pessoas do seu caminho rotineiro e de onde teria vindo aquele som peculiar. Foi então que viu finalmente um amontoado de pessoas que se acotovelavam para se aproximarem de alguma coisa que Clara ainda não conseguia deslumbrar de tão espessa que era a barreira formada à frente dos seus olhos.
Decidiu aproximar-se, mas sem saber porquê usava passos lentos e indecisos como se por alguma razão desconhecida o seu corpo lhe disse-se para não avançar mais. Mas Clara, sofria da mesma doença que afecta todos os Homens à face da Terra e provavelmente também nos seus arredores...a maldita da CURIOSIDADE!!! Por isso, lá se foi aproximando do local do enxame mas sem deixar de sentir uma sensação de aperto no peito que lhe ia roubando o fôlego em cada passo dado.
Abriu caminho por entre todas aquelas costas transpiradas que lhe barravam a visão e ficou paralisada diante do horror que jazia ali perto dos seus pés.
Na estrada estava uma mulher ainda jovem deitada no chão totalmente imóvel de olhos parados e com o corpo manchado de sangue. Clara ainda tentou ver-lhe o rosto com mais pormenor para medir-lhe a idade , mas rapidamente surgiram dois vultos vestidos de branco que se debruçaram sobre a mulher tapando-a por completo com um lençol branco feito de um tecido baratucho.
Ergueram a mulher no ar e levaram-na com eles, mas Clara reparou que apesar de eles estarem vestidos de branco não pareciam ser anjos. Até porque Clara, ainda se lembrava de todas as imagens do seu livro de catequese de miúda e em nenhuma delas os anjos vestiam batas brancas...

II PARTE

A jovem mulher que Clara viu estendida no chão já cadáver, foi transportada por uma ambulância pintada de branco e ela olhava atentamente para o fundo da rua enquanto a via desaparecer naquele meio de transporte peculiar.
Na cabeça ainda guardava uma leve recordação dos traços do rosto daquela pobre mulher que viu a vida ser ceifada precocemente. Ainda era jovem, deveria ter segundo os seus cálculos mentais mais ou menos a sua idade. Talvez fosse um pouco mais velha, uns quatro ou cinco anos porque havia no seu rosto algumas rugas a mais do que no dela. E as rugas são o melhor indicativo para a idade de uma pessoa... são quase como os códigos de barra nos produtos do supermercado que nos indicam todas as características do produto que enfiamos para o cesto. As rugas são o nosso código de barras, porque naquelas linhas disformes está marcada toda a nossa vida sem direito a omitir os dias menos favoráveis. Está tudo lá registado e bem visível aos olhos de todos num simples franzir da testa.
Como teria sido a vida daquela mulher minutos antes de ter tido a ideia fatal de atravessar aquela rua?
Ela tinha um aspecto cuidado, vestia-se bem e usava um perfume caro o que seria um indicativo bem claro da presença de uma boa conta bancária no banco.
Talvez estivesse atrasada para retornar ao seu emprego onde deveria ocupar um cargo importante, com bastante responsabilidade e talvez por isso mesmo tenha tido aquele impulso de correr para a rua sem olhar á sua volta. Sim, aquela era uma hipótese provável no seu entender... mas ela ainda pensava noutras possibilidades.
Uma era difícil não lhe vir à cabeça naquele momento, até porque ela mesma também já tinha pensado nela como sendo a solução definitiva para todos os seus problemas... uma tentativa de suicídio bem sucedida.
Se calhar aquela senhora sentia-se muito sozinha, sem o carinho de um homem ou sem um filho nos seus braços. Ficou cansada de acordar sempre numa cama vazia e de ouvir todas as manhãs o silêncio trespassando-lhe as paredes da casa. Talvez ela sonhasse todas as noites com os ruídos de uma criança a correr pelos corredores soltando longas gargalhadas debaixo do olhar vigilante dos pais.
Sim, isso seria o suficiente para que aquela mulher sem nome quisesse acabar de vez com a maldita dor que sentia no peito. Clara conhecia bem essa dor e sabia como ela podia ser cruel e desgastante.
Mas poderia também não ter sido um suicido e aquela morte não passaria de um brutal descuido da parte daquela senhora.
Então ela imaginou duas pessoas discutindo com vozes alteradas e muitas palavras cuspidas sem qualquer sentimento da boca para fora. Se aquela mulher tivesse dito as palavras erradas à pessoa certa ou se tivesse escutado meias palavras poderia ter ficado perturbada e por minutos ter esquecido da realidade.
Naquela cabeça desesperada com a ideia de ter perdido o seu amor não haveria espaço para os carros na rua muito menos para passadeiras ao atravessar a rua. Não havia mais nada naquele olhar, só a imagem daquele homem, o resto do mundo ela tinha apagado.
E se as palavras que foram ditas ecoassem com força nos ouvidos naquele preciso momento, talvez a mulher nem tivesse ouvido o buzinar estridente do carro que a atropelou e assim tivesse avançado como um cordeiro inocente prestes a ser sacrificado.
Agora o pensamento de Clara parecia uma lista telefónica muito extensa com muitas ideias prontas a serem folheadas. Havia tantos motivos para aquela morte que Clara seria incapaz de mencionar todos.
Mas mesmo assim foi tentando enumerá-los enquanto caminhava no passeio com uma passada lenta e cadenciada.
Imaginou dividas de jogo conseguidas numa mesa de poker num casino luxuoso e cheques com quantias gordas a serem assinados pelas mãos franzinas daquela mulher e tossiu com o cheiro a tabaco que subitamente lhe invadiu a garganta.
Vieram-lhe à ideia embalagens de calmantes tomados ao deitar numa tentativa desesperada de trazer o sono à sua cama e o copo de whisky vazio na mesinha de cabeceira do quarto da falecida com uma garrafa ainda por abrir colocada ao lado de uma já meio cheia .
Teria sido este o cenário daquela mulher na noite anterior à sua morte? Estaria sozinha? Ou teria tido uma noite escaldante de sexo na cama de algum estranho engatado num qualquer bar lambido?
Talvez ela simplesmente estivesse a pagar os erros cometidos no passado ou mesmo no presente. Deve haver lá em cima um cobrador de almas à semelhança das finanças nos cobram os impostos e se ultrapassamos a data limite de pagamento são nos cobradas as dívidas e com juros.
Pobre mulher que não pagou as suas dívidas a tempo!

Daniela Pereira

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