domingo, junho 21, 2009

Diário do que nunca escrevi em ti...


Foto pela a autora Daniela Pereira

É quase meia noite...a hora dos pardos e dos murmúrios inacabados.
Hoje escrevo apenas para a minha escuridão...mas sei que uma luz vigia-me..ténue e fraca ensonada com medo de me ver cegar quando cerro os olhos aparentando já algum cansaço em demasia...
Mas nenhum sonho me derruba sem que eu me liberte de todas as minhas fantasias...e os pobres dos pesadelos ficam em lista de espera, esperando o meu adormecer sossegados.
Faço tranças no cabelo para recuperar alguma da minha inocência....saudosa da minha doce escravatura... Talvez não saibas, mas o monstro aqui um dia já foi criança ingénua ao pé de ti...
Lembro-me de ti e choro...talvez chore porque já te esqueces-te ou talvez soluce apenas porque há muito tempo atrás eu nunca te conheci...
Recordo com precisão de todos os recantos em que te beijei e todo o amor sentido que deixei espalhado com as tuas roupas, só pela pressa de te amar antes de não te ter aqui...no mesmo espaço desocupado em mim onde já não te tenho..
Afirmo com toda a determinação que os lençóis da tua cama eram sempre brancos e que a colcha que nos cobria no Inverno respirava em japonês e via filmes eróticos legendados a preto e branco para disfarçar o vermelho que lhe corria nas veias...tudo para não estragar o nosso cenário romântico.
Reconheço o aroma a rosas das velas que guardavas religiosamente no fundo de uma gaveta e todas as músicas que esperavam por nós em cima da mesinha de cabeceira..
E lembro-te até...fiel à estupidez que existe em todas as memórias desconexas...e lembro-me até daquela dança...daquela valsa abraçada com a tua roupa no meu corpo, despida do resto do mundo guiada só por ti...ali perdi a razão com gosto na melodia dos teus passos.
Tinhas uma lua cheia pendurada no tecto e todas as noites tenho que confessar que sentia uma vontade irresistível de a roubar só para mim para te deixar nu de toda a escuridão e sorria matreira enquanto respiravas ronronante.
Nunca vi o sol nascer no teu quarto, porque não me lembro de alguma vez ter adormecido quando desejava apenas ver-te a sonhar....Era mais feliz acordada, desperta de qualquer tentativa de encontrar um ponto fraco naquela ilusão e depois era ver-me a amar de olhos abertos pela noite fora...
Já corri descalça no teu chão depois de refrescar o corpo na tua banheira..Repara que digo sempre "tua" porque nada neste espaço foi um dia também um pouco meu...passar ali rasando perfume no corredor não te mudou os cheiros entranhados no design das paredes.
Tinhas umas lareira na sala, que por acaso nunca vi acesa...mas nunca senti gelar uma só emoção mesmo sem as labaredas crispando na tua fogueira... .
Fugia do frio calcando ligeira o negro do tapete e pulava para o teu leito feito sempre à
tua medida..
Partias e repartias livros e construções projectadas com o pó instalado nas prateleiras...Candeeiros à solta e outros tantos suspensos por um fio ou enroscados em teias complexas que não os deixavam cair ao chão... num equilíbrio perfeito, todos ficavam desejosos de iluminar a tua fácil solidão.
Tinhas gosto a tabaco e a todas as guloseimas que durante a tarde engolias..confundias-me os sentidos quando me beijavas com tantos sabores encruados na língua .
E os teus quadros? Tinhas quadros traçados por ti a exaltar a cor das paredes com amores passados que se exibiam em poses sensuais lembrando instantes onde o teu chão foi um enorme colchão de água...
No teu quarto nada te era familiar..apenas molduras sem rosto esperavam que um dia lhes devolvesses alguma alma e ficavam a olhar insistentemente para ti à espera que ainda as reconheças depois de despejadas das muralhas do teu castelo encantado.
Na sala tinhas ainda um sofá branco onde cavalgavas em mim quando o teu corpo adivinhava para onde queria ir o balanço do meu...e ali descansavas as tristezas e saciavas a tua fome por entre montanhas arrepiadas molhadas pela tua boca...
E trocávamos carícias só por trocar..porque era bom ter o que partilhar e um dia prometemos que nada ficaríamos a dever um ao outro porque teríamos sempre algo para dar...e os meus olhos brilhavam quando te sentiam numa cumplicidade que sussurrava perto de mim e afinal..afinal desconfiavas de todas as promessas com pensamentos que iam para longe...
Conhecia-te as curvas do pescoço..o peso das tuas mãos afundadas na minha carne e enterradas bem fundo na minha alma..adivinhava porém quando ias soltar aquele sorriso oblíquo e até a pele das tuas orelhas sabia ser presa a cativar por mim...
Por uma suposta curiosidade na tua cozinha não havia pão quente pela manhã...
A madrugada era quem nos alimentava sempre que nos ouvia os gemidos e as noites foram sempre acolhedoras para contarmos as horas com paixão...
Por vezes quando o silêncio se fazia sentir entre nós...eu erguia os dedos no ar como nas carteiras da escola e desenhava-te no vazio preenchendo-te pedaço por pedaço na união do meu olhar...depois repetia-te gulosa já nos teus braços e com toda a minha escrita amarga e doce fluías em mim como se fosses o meu mais rico poema...

Tristes são as memórias que já não faz sentido rever...porque sabemos que hoje florescem sem o calor das mãos que outrora as afagavam para que elas se pudessem fechar encontradas.

Felizes são os espinhos que nada têm a temer das feridas que consentem...

Olho para o relógio e as horas pardas ainda cá estão..são meia noite e meia eu com tanto ainda para dizer. Desculpa, mas ouço uma voz dentro de mim que me grita a medo vinda de algum canto virado do avesso... "Para ti poetisa, acabaram-se as folhas em branco e o coração a bater...adormece mais linda e segura porque não há mais nada para o teu pensamento decorar...porque tu já conheces esta história de cor...

The End is now..

Daniela Pereira in "Musas para trás das costas"...
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