terça-feira, novembro 28, 2006

O algodão não engana...




Clara despertou lentamente e olhou de mansinho para o relógio… 9h30 nem mais um minuto porque o tempo tem um passo certo. Enquanto projectava o olhar na mesinha de cabeceira deparou-se com um espaço invulgarmente vazio…o outro lado da cama.
Sim, porque aquela cama de casal tinha dois lados fortemente marcados e independentes.
O lado esquerdo encostado à parede onde os lençóis viviam numa perfeita desordem porque ali o caos era apreciado por ser um sintoma de liberdade. Era o lado do Tony, machista e dominador onde tudo estava a seu gosto…e ela sabia que nem valia a pena contrariar uma força da natureza, por isso limitava-se a sorrir e sempre que invadia temporariamente aquele espaço aproveitava sempre para ajeitar um pouco as rugas da roupa de cama… assim como quem não quer a coisa, com muito jeitinho e discretamente.
Agora, já o lado direito da cama era o oposto…mais arejado sem barreiras e com a luz da janela sempre a incidir na cabeceira. Os lençóis ali eram como cadetes em dia de inspecção na tropa…todos direitinhos e alinhados. Rugas no tecido…nem vê-las…lençóis sempre lisinhos e aprumados. É claro que este lado, só podia ser o lado da Clara, feminino e harmonioso onde a ordem vencia por unanimidade.
Mas hoje o lado esquerdo estava nu e sem exercer o seu direito de voto a ordem comandava aquela cama com maioria absoluta. Clara sentia falta da desordem… dos lençóis pendidos para o chão… do cheiro forte a conhaque que costumava empestar o ar daquele quarto. Até disso ela sentia falta!! Como podia ser, aquele cheiro a álcool costumava deixá-la fora de si… mas não …hoje sentia a sua ausência.
Não havia pó na sala porque todos os objectos estavam limpos e colocados nos lugares exactos. E isso esta manhã irritava-a profundamente, tinha vontade de cuspir para o chão, de abrir todas as gavetas da cómoda e deixá-las assim com a roupa toda de fora… sim isso seria o ideal.
Então sentou-se na cama e endireitou a cabeceira, depois ergueu os olhos e olhou em frente … mesmo em cheio na direcção do espelho. Não se achava feia, era até uma mulher com alguma graça de rosto perfeitinho e uns olhos grandes que o Tony costumava apelidar de pérolas selvagens… só que eles hoje estavam domesticados, sem garra nem ousadia no brilho. De certeza que estavam mortos…
No que diz respeito ao desenho do corpo, também considerava que não se saía mal… as suas curvas estavam bem delineadas e eram generosas mas sem serem demasiado dadas.
Sim ela até que era bonita, então o que tinha falhado ali? Porque é que nesta manhã estava ali na cama estupidamente a falar sozinha?
Então subiu-lhe pelo corpo uma raiva súbita que a deixou em brasa e em poucos segundos um candeeiro voou contra a parede caindo depois rendido no chão.
E lá ficou ele, desfeito em mil pedaços impossíveis de recuperar…
Clara sentia agora o inevitável arrependimento pelo gesto precipitado… sentimento de culpa e remorsos porque não ter sido capaz de respirar fundo antes de agir. PRECIPITAÇÃO!! Aquela palavra ecoava na sua cabeça como louca …
PRECIPITAÇÃO… sim talvez fosse ela a razão de todos os seus problemas. Talvez fosse nela que ela devia despejar toda a sua ira. Afinal ela tem tudo para ser culpada pela sua dor.
Foi ela que a atirou de cabeça para os braços do homem errado… foi ela que lhe mandou dizer sim quando outros lhe diziam não… até foi ela que deu aquele beijo molhado num dia de sol. Sim foi ela… sempre ela!
Palavras ditas cedo demais que bem podiam ter ficado mais algum tempo a marinar e a ganhar gosto antes de serem servidas à mesa.
Noites demasiado fáceis com orgasmos demasiado óbvios sentidos em posições demasiadamente previsíveis… se ela tivesse sido menos precipitada nas suas certezas e tivesse optado pelo e “porque não?” em vez do “gosto mais assim” se calhar ainda estava a dormir com um abraço cortando-lhe a respiração em vez de estar ali sentada com o corpo teimosamente livre e desprendido.
Mas Clara sabe tão bem que nada dura para sempre… nada é eterno para alem da dor. Essa sim! Dá voltas e voltas ao mundo mas regressa sempre algum dia ao ponto de partida… o teu peito.
E a verdade é que hoje são 11h30 menos minuto …mais minuto, a cama dela está imutavelmente perfeita e porque o algodão não engana… ela sente que alguém limpou o seu coração e nem um grão de poeira de recordação nele deixou…hoje ele voltou a ser apenas mais um quarto vazio.


Daniela Pereira-28/11/06

terça-feira, novembro 21, 2006

A solidão da carne




Porque tenho que me sentir assim?
Porque não sou apenas só mais uma pedra
no caminho por onde todos passam…
Porque tenho que sentir na carne
todos os passos que me atropelam a alma?
Se os pássaros quando cantam
ouvissem todos os ruídos do mundo
se calhar não perderiam tempo a inventar seus trinados
mas eles conseguem calar tudo à sua volta
para puderem chilrear no silêncio.
Então…Porque tenho eu que ouvir
o barulho de todas as bocas que se fecham para mim
a ranger prolongadamente nos meus ouvidos?
Não podiam fechar-se lentamente
com gestos suaves
como quando a areia escorre por entre dedos mal cerrados…
Tinha que as ouvir fechar!

Porque preciso de palavras densas
repletas de claridade e lucidez
e não me contento
com as que são ditas pelo meio
só para não dizer que chegou o fim.
Nasci no seio de uma maldição
e abri os olhos pela primeira vez
no berço traiçoeiro da sensibilidade
que hoje me afaga
como se fosse uma segunda mãe para mim.
Beija-me o corpo todos os dias…
Fere-me a alma todas as noites…
Ama-me e odeia-me como ninguém
Morro mil vezes por ela
quando o desespero em mim se instala
de malas e bagagem.
Mas no fundo sei
que será sempre com o seu ar doce
a entrar pela minha boca que voltarei a renascer
de olhos inchados e no rosto um sorriso discreto.
Mas porque tenho eu que sentir?
Não podia ser só mais uma pedra na solidão de uma calçada…
Existem tantas por aí perdidas…
Eu seria só mais uma…

Daniela Pereira-21/11/06

segunda-feira, novembro 06, 2006

Será a presa do predador

"Porque este espaço é tão especial para mim...porque sem ele sou como uma pintora sem tela...voltei :)"

Será a presa do predador?

Será que amo menos o silêncio
só porque ele grita estridente na minha noite?
Será que ainda tenho palavras
que o derrubem
como se ele fosse só mais um castelo de cartas
que ergui numa mesa de uma esplanada qualquer
sem sentir o vento
que rugia no meu rosto?
Será que ainda provo um fruto proibido
e não receio cometer um pecado capital
porque da luxúria
já fui escrava sem cativeiro
e agora sou apenas vítima dos sentimentos?

Será?






Special Needs
By Placebo
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Será que ainda grito livremente o grito das mulheres
ou desta garganta só saem gemidos
que um corpo de homem aprisiona?
Pobres destes murmúrios
que não sabem
que estão destinados a morrer
num beijo cortante
roubado à minha boca de papel
quando o coração
se recusar a bater mais por mim.

Então porque se
escondem as tesouras
dos meus dedos irrequietos
só porque os meus lábios
hoje brilham como papéis de prata
e a língua parece pedir
para ser recortada?
Será que ainda não sabem
que já vivo na ponta de uma navalha
sempre que converto
a minha alma
num predador sanguinário do meu corpo…
Será que o mundo está assim tão cego?

Blue- 4 /11/06