quarta-feira, outubro 12, 2005

Compra-me o sorriso daquela montra...



Esta manhã, Clara saiu de casa com um andar despreocupado e os bolsos vazios. Hoje ela sabia que não teria nada para comprar com moedas porque os seus beijos serviriam de pagamento. Além disso o seu objecto mais cobiçado estava ainda plantado num jardim com os pés bem assentes na terra apenas baloiçando para o vento que soprava descontraído. Era bonita aquela tulipa negra que ela tinha visto ontem à noite durante o seu passeio nocturno. Poderia não a ter visto, mas ontem estava um luar tão luminoso e com as estrelas como lanternas ,Clara não teve dificuldade em descobrir aquela flor erguida na relva.
Durante largos minutos, ela ainda ficou de olhos semicerrados a imaginar que alguém passaria ali e gentilmente colheria aquela preciosidade para ela e com um sorriso rasgado estenderia a mão para depositar aquela flor junto do seu peito.
A noite estava tão silenciosa , que o seu suspiro profundo ecoou na paisagem calada e a pobre rapariga sentiu que o seu rosto adquiria um tom avermelhado impróprio para a sua tez normalmente caiada. Mas como ela estava ali sozinha foi-se esquecendo do embaraço e sorriu deliciada com a sua fantasia inocente.
Agora e depois de uma noite bem dormida, Clara já não sonha e apenas caminha pela rua olhando a realidade que a cerca. São duas e um quarto, e os corredores do centro comercial enchem-se de saltos altos barulhentos e conversas animadas, mas Clara mantém a sua boca bem fechada enquanto se vai desviando agilmente de alguns sacos que surgem na sua direcção sem mostrarem disponibilidade para evitar um choque que se aparenta iminente.
As montras são apetitosas ao olhar, recheadas de tentações sedosas e coloridas fazendo crescer os rostos colados aos vidros das montras .Clara ,é apenas só mais um rosto encantado entre tantos ,que já ocupam o seu espaço naquele circo de ilusões. Mas um desvio rápido do olhar para aquele rectângulo de cartão discretamente pendurado nos manequins faz perder toda a magia daquele momento. De repente, os charmosos manequins tornam-se disformes aos olhos de Clara, e aqueles tecidos luxuosos que lhes vestem o corpo de plástico parecem-lhe agora trapos velhos. Para que quero eu trapos velhos? Pergunta entre os dentes , enquanto baixa a saia que encorajada por mais uma rajada de vento teima em lhe por a descoberto as pernas franzinas .
Num gesto impulsivo, põe a mão na carteira vazia e vai invejando os sorrisos que saem das lojas brilhando como novos. No seu pensamento regressa então a imagem daquela tulipa negra combinando com os seus olhos de carvão e também ela sorri ...e eu juro por Deus que aquele sorriso era o mais bonito de todos os que estavam à venda naquela montra.

Daniela Pereira

2 comentários:

Fragmentos Betty Martins disse...

Olá Daniela


Que delicia... esta forma tão doce em que escreveste

"Compra-me o sorriso daquela montra"...

Parabéns está belíssimo:)

Beijinhos

blueiela disse...

Olá Betty


Muito obrigado pela ternura das tuas palavras :)
É sempre um enorme prazer receber-te nos meus Devaneios...

beijinhos

Blue